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Confraria Gastronómica do Mar: Identidade à Mesa

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No coração de Matosinhos, terra de pescadores, conserveiras e caldeiradas fumegantes, nasceu há mais de duas décadas uma ideia que viria a transformar-se numa instituição de referência da cultura gastronómica portuguesa. A Confraria Gastronómica do Mar, fundada a 4 de novembro de 1999, é hoje sinónimo de compromisso com a memória, identidade e futuro da cozinha ligada ao mar. O seu percurso é feito de dedicação, encontros intergeracionais, partilha de saberes e profunda ligação às raízes marítimas do país.

A génese da Confraria não se explica sem entender o contexto cultural e social de finais do século XX. Nessa época, os modos de vida tradicionais começavam a ceder perante a pressão da globalização, e as práticas ligadas ao mar – como a pesca artesanal, a culinária tradicional e a cultura conserveira – corriam o risco de se diluir. Perante essa ameaça, um grupo de pessoas de diferentes origens profissionais e culturais decidiu agir.

A Confraria nasceu da vontade de um grupo de matosinhenses ilustres — José Armando Ferrinha, Joaquim Queirós, Alberto Magalhães (e sua esposa), Paulo Machado da Silva e o Professor Henrique Calisto — em constituir uma instituição que valorizasse, promovesse e defendesse a gastronomia de base marítima, tão enraizada na vida social, económica e afetiva da cidade de Matosinhos. Num tempo em que as confrarias gastronómicas ainda eram raras e incipientes, a Confraria do Mar foi pioneira, ousando afirmar-se quando ainda poucos compreendiam o verdadeiro alcance de tal iniciativa.

Reuniu, desde a sua origem, figuras da cultura, da restauração, do jornalismo, do ensino, da cidadania ativa e do associativismo, todas unidas por um mesmo desígnio: preservar os sabores do mar que fazem parte da identidade matosinhense. Caldeiradas fumegantes, raia de carne firme, arroz de tamboril, polvo à moda antiga, cavala grelhada ou em escabeche, e o simples, mas inigualável arroz de sardinha, são apenas algumas das iguarias que motivaram e continuam a motivar esta dedicação.

Mas não se tratava apenas de conservar receitas antigas. A vontade era também de celebrar, de partilhar saberes e paladares, de passar o testemunho às gerações futuras, para que o património gastronómico marítimo não se perdesse na voragem do tempo e das modas.

Ao longo dos anos, a Confraria Gastronómica do Mar foi crescendo, solidificando-se, ganhando visibilidade e prestígio. Participou em eventos gastronómicos por todo o país, marcou presença em congressos internacionais, visitou confrarias irmãs em França e Espanha, trocando experiências, receitas e boas práticas, e tornou-se uma embaixadora legítima da riqueza culinária do litoral português.


Uma nova era de dinamismo e presença

Apesar do prestígio conquistado, os anos foram passando, e a confraria, como tantas outras instituições, atravessou momentos de menor fulgor. Foi então que, em 2019,  foi entronizado como frade José Manuel Ramos de Carvalho, que viria a assumir a presidência da confraria — o “timão” — em 2022.

Sob a sua liderança, a Confraria Gastronómica do Mar entrou num novo ciclo, marcado pela renovação, modernização e reaproximação à comunidade.

“A confraria estava um pouco adormecida. Faltava presença, mobilização, sede, ferramentas. Agora temos uma sede, encontros regulares, presença em eventos, comunicação estruturada. E temos sonhos”, explica o Mestre Timoneiro.

A sede, há muito desejada, foi uma das conquistas simbólicas mais importantes. Com o apoio da Câmara Municipal de Matosinhos, foi finalmente atribuída e inaugurada pela Dra. Luísa Salgueiro, marcando um ponto de viragem na estrutura interna da confraria. Deixou-se para trás a improvisação de reuniões em escritórios cedidos por confrades e passou-se a ter um espaço próprio para reunir, guardar arquivos, acolher eventos e projetar o futuro.

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Missão: divulgar, integrar, reinventar

Com mais de 600 restaurantes no concelho de Matosinhos, trata-se de uma das maiores concentrações de oferta gastronómica do país. Essa realidade encerra um imenso património, mas também desafios, nomeadamente o risco de homogeneização, da perda de autenticidade ou da vulgarização da tradição culinária.

A Confraria Gastronómica do Mar tem, por isso, assumido como missão central divulgar essa riqueza, destacar os restaurantes com história e identidade, valorizar as casas que respeitam o produto, os métodos tradicionais e o conhecimento empírico transmitido entre gerações.

O Mestre Timoneiro tem impulsionado uma agenda ativa de presença em eventos por todo o país: Valongo, Vila Real, Penacova, Pontevedra, também em Cambados na Galiza, entre outros. Em muitos destes encontros, a confraria mobilizou largas dezenas de confrades, levando os sabores e saberes do mar até ao interior, criando pontes culturais e gastronómicas.

Em simultâneo, um dos grandes desafios identificados é o da renovação geracional. Como muitas confrarias, também a do Mar enfrenta o natural envelhecimento dos seus membros. Para combater essa tendência, têm sido promovidas iniciativas de envolvimento de familiares, amigos, alunos, jovens profissionais da restauração e apaixonados pela gastronomia, de forma a trazer sangue novo e novas ideias, mantendo as raízes, mas adaptando-se às exigências dos tempos modernos.

“Uma confraria não pode existir apenas para os confrades mais antigos. É preciso olhar para o futuro e tornar isto atrativo para os mais jovens. Se não houver renovação, morre a tradição”, afirma o Mestre.

Entre os projetos em curso, está a criação de um prato identitário da confraria, que possa funcionar como cartão-de-visita da mesma. O arroz de sardinha surge como candidato natural: um prato simples, quase ausente das cartas dos restaurantes contemporâneos, mas que representa um verdadeiro tesouro da cozinha de subsistência da região.

Outro eixo importante de atuação tem sido o registo da memória oral de pescadores, cozinheiros e mariscadores. A ideia é recolher testemunhos em primeira pessoa, criando um arquivo vivo de histórias e saberes, através de palestras, entrevistas e registos audiovisuais. Este património imaterial é visto como tão valioso quanto as próprias receitas.

Também se equaciona a realização de um ciclo de conferências temáticas sobre o mar, abordando temas como a sustentabilidade das pescas, a evolução dos consumos alimentares, as alterações climáticas e o impacto no ecossistema marinho. A Confraria quer posicionar-se não apenas como guardiã da tradição, mas como um agente cultural atento e interveniente.

 

Uma confraria com causa

Hoje, a Confraria Gastronómica do Mar vive um momento particular da sua história. Longe da fase de fundação, e com décadas de experiência acumulada, atravessa o que o seu Mestre Timoneiro, José Manuel Ramos Carvalho, designa como uma fase de “insatisfação produtiva”. Não se trata de desalento — antes pelo contrário. Trata-se de um estado de consciência crítica, de quem sabe o valor do que já se alcançou, mas reconhece, com lucidez e humildade, que há ainda muito por fazer.

Esse sentimento é partilhado por muitos dos confrades que acompanham o projeto desde os seus primeiros anos. Sentem que a missão está viva, mas inacabada. E que essa inquietação criativa é, na verdade, o que os move. “Só quem se acomoda é que perde relevância. Nós, felizmente, ainda não nos acomodámos”, resume um dos confrades fundadores.

Os desafios são múltiplos e complexos. Por um lado, há a exigência da organização interna: é necessário manter uma estrutura coesa, operativa, capaz de responder às exigências atuais de comunicação, logística e tomada de decisão. A confraria cresceu, ganhou visibilidade, e isso exige mais profissionalismo — sem perder o espírito de proximidade que sempre a definiu.

Por outro lado, há a eterna questão da sustentabilidade financeira. Manter atividades regulares, desenvolver projetos editoriais, participar em eventos, dinamizar a sede recém-inaugurada e apoiar ações de formação e investigação implica custos. Conseguir apoios, parcerias e novas formas de financiamento tornou-se um dos eixos estratégicos para garantir o futuro.

A comunicação com os restaurantes é outro ponto fulcral. Muitos estabelecimentos locais partilham os valores da confraria e têm colaborado ativamente em eventos e promoções da gastronomia do mar. Mas nem sempre é fácil alinhar visões, sobretudo num setor marcado por pressões comerciais, modas culinárias e ritmos acelerados. A confraria pretende afirmar-se como ponte entre a tradição e a inovação, apoiando os restaurantes que valorizam os produtos locais e o receituário tradicional, mas também desafiando-os a não perderem autenticidade no processo.

Um dos grandes objetivos passa por atrair novos confrades, nomeadamente mais jovens, com diferentes perfis e competências. É essencial garantir a continuidade do projeto e renovar a energia interna da confraria. Para isso, têm sido organizadas sessões abertas, conversas com estudantes de hotelaria, parcerias com escolas e até propostas de voluntariado jovem.

Mas talvez o maior desafio de todos seja este: preservar a autenticidade gastronómica num mundo cada vez mais globalizado. A industrialização dos processos alimentares, a massificação de sabores e a uniformização cultural ameaçam o que a confraria mais defende — a diversidade, a memória, o cuidado artesanal, a relação direta com o mar e com o território. Combater essa tendência implica firmeza, mas também criatividade.

“Queremos ser mais do que uma confraria gastronómica. Queremos ser uma referência cultural, uma ponte viva entre o passado e o futuro da gastronomia matosinhense”, afirma, com a convicção de quem viu crescer o projeto desde o primeiro dia, o Mestre José Manuel Ramos Carvalho.

Essa ambição não é vaidade — é responsabilidade. Ao assumir-se como guardiã de um património imaterial que pertence a todos, a confraria compromete-se com um trabalho contínuo, exigente e coletivo.

E é precisamente esse sentido de comunidade com propósito que continua a dar força à confraria. Como recordam os confrades mais antigos, com um sorriso de quem já passou por muito:“Uma confraria é, sim, um convívio entre amigos — mas amigos com uma causa. E essa causa é o mar. É por ele que nos reunimos. É por ele que cozinhamos. É por ele que existimos.”

Porque o mar não é só paisagem nem apenas recurso económico. É herança, é memória, é identidade. E a Confraria Gastronómica do Mar, enquanto existir, continuará a ser a sua voz — à mesa, nas palavras e no coração de Matosinhos.

 

Manuel Pinheiro: uma vida a servir o mar

Mas a história da confraria também se escreve com aqueles que sempre estiveram presentes. Um dos nomes incontornáveis é Manuel Pinheiro, do restaurante O Gaveto, um dos mais reputados de Matosinhos e do país.

Pinheiro é mais do que um gastrónomo. É um apaixonado pelo mar, um estudioso da cozinha tradicional e um embaixador espontâneo da gastronomia local. Esteve presente desde os primeiros anos da confraria, serviu almoços memoráveis, levou pratos icónicos aos congressos da Europa — como o arroz de lavagante, o carrossel de mariscos ou os percebes — e sempre se mostrou disponível para ajudar.

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“A confraria precisa de ouvir. Precisa de fóruns, de reunir os seus, de envolver os restaurantes. Não se faz associativismo sem escutar”, defende.

Para ele, o envolvimento da restauração local é essencial — não só como palco para os eventos da confraria, mas também como motor da sua missão educativa e cultural. Pinheiro recorda com saudade os concursos de caldeirada e marisco, e insiste que a confraria deve puxar pela memória dos pratos simples e honestos.

“Uma caldeirada, um arroz caldoso de raia, uma cavala bem tratada, são pratos que contam histórias. E temos de saber contá-las”, reforça.

 

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